domingo, 14 de setembro de 2008

Fragmentos

O despertador toca e ela custa a acreditar. Nem parece que havia fechado os olhos. Nem parece que tinha ao menos cochilado. Os livros estão ali ao pé da cama, ela nem se lembra em que momento havia deixado de ler. Não se lembra de ter programado o despertador. Só sabe que por mais inacreditável que seja é manhã de domingo e ela precisa tomar de novo aquele energético pra dar conta de voltar a estudar. Nem sabe direito porque precisa, mas precisa. Seu corpo pede mais cama: ele não entende! Passam dois segundos e os olhos se fecham de novo. Ela luta e se senta. Os ombros incrivelmente rígidos, o pescoço dói, a cabeça dói.Ela prende os cabelos, lava o rosto, toma um copo de leite e o energético, volta aos livros. Ela poderia estar entre amigas, ter um encontro para mais tarde, fazer uma caminhada aproveitando o clima fresquinho da manhã, poderia participar dos preparativos para o almoço, retomar as aulas de dança, mas não tinha tempo para isso. Ela poderia conversar com a velha avó, saber um pouco da vida dos irmãos, ver de novo aquelas fotografias ou simplesmente descansar. Mas ela parecia nem mais saber o que isso significava. Tempo era feito para preencher, não necessariamente para viver. Às vezes, quando havia um tempo entre uma atividade importantíssima e outra ainda mais, ela se pegava triste, às vezes, desanimada, às vezes, vazia. Mas na maioria das vezes, engolia tudo isso com uma barra de chocolate e seguia em frente. Às vezes seu corpo pifava, dores pelo corpo, mal humor, choros "sem motivos", falta de memória, às vezes ela percebia, às vezes confundia as fomes e ia de novo para a coxinha ou para o energético. Às vezes percebia que as roupas não entravam mais, às vezes percebia que sua fome era outra, às vezes percebia que por mais energéticos que tomasse lhe faltava algum outro tipo de energia, mas não havia tempo para dar atenção a isso.

O cachorro da vizinha insistia em latir, o sol forte invadia a fresta que a cortina insistia em abrir, embora adorasse enrolar-se no edredon o calor inistia em gritar no seu corpo que era hora de abrir mão daquele pequeno prazer, justo nesse momento em que lhe faltava qualquer gosto por qualquer coisa. Tanta insistência parecia um complô, uma combinação macabra para fazer sua vida mais irritante. Dormir em silêncio, no escuro, enrolada no edredon: era pedir demais? Domingo? Quem inventou o domingo? Provavelmente o sócio de quem inventou a segunda-feira, o dia dos namorados e as rugas. Sim, ela estava à beira de um ataque de nervos...Arrastou-se da cama para o banheiro, sentiu a água fria entre os dedos, depois um tapa de água fria no rosto. No espelho uma desconhecida: 31 anos, meu Deus! Onde foram parar os cílios fartos, as bochechas rosadas, a pele firme? Onde foram parar os sonhos, as certezas, as risadas altas? Sente raiva outra vez do cachorro da vizinha.Há duas semanas espera pelo telefonema que não vai acontecer. Já conhecia o enredo. Ele não ligaria e ter se despedido dizendo "a gente se cruza por aí" era mais que suficiente para ela saber. No fundo nem queria vê-lo de novo - nem cruzar, seguindo sua expressão - mas era dura a sensação de continuar a protagonista do velho enredo ou a mera espectadora de uma história repetida.Queria contato, mas já não acreditava ser possível acontecer algo diferente. Seu corpo pedia por toque e ela se entregava à única alternativa que achava possível: sair com mais um babaca com quem nunca mais gostaria de cruzar por aí e sofrer nos dias seguintes. No fundo esperava por mais, mas uma voz insistia em dizer que era bobagem. Ela vinha praticando um misto de autopiedade com autoflagelo, um misto de "pobre coitada" com "maldita idiota" e ia levando.

Quatro filhos... Três meninas e um menino... Os dois primeiros formavam o tão sonhado casal. A terceira veio planejada, a quarta meio no susto mas coroando o sonho de uma família farta. Muito jovem se casou e logo a vida lhe trouxe os filhos, um atrás do outro. 20 anos depois, tantas histórias. Diante dos retratos na sala de estar ela sente uma ponta de orgulho pelo que já foi e um grande vazio pelo que é. Os mais velhos já distantes, em belos caminhos mas dos quais ela não parecia fazer parte, a mais nova, a única que ainda vive com ela parece viver em outro mundo do qual a mãe também não se sente parte. Durante todos esses anos ela foi mãe. E isso incluía noites em claro, abaixa e levanta, lavar fraldas (sim, não existiam as descartáveis), idas e vindas ao pediatra, escolher a melhor escola, levar e buscar, acompanhar o dever de casa, assistir as apresentações, curar os ferimentos, ouvir o bater de portas, fazer café, almoço, jantar, lavar a roupa, passar a roupa, cuidar da casa, arrumar as bagunças, cuidar do que se ouve e do que não se ouve, preparar para as melhores e piores notícias, acompanhar as vitórias, acolher os choros... E isso excluía o descanso após noites em claro, fazer refeições na hora certa, ir às consultas para cuidar daquela dorzinha na coluna, daquela tontura, daquela falta de ar, ter tempo para uma caminhada, para um bate papo com as amigas, para um jantar romântico com o marido, cuidar da sua aparência, cuidar dos seus sentimentos... Agora o vazio... O que seria? O que faria da vida? O que lhe restava afinal? O marido lia o jornal, como fizera durante todos os domingos de todos aqueles anos. Ela lembra que no início eles ainda se sentavam juntos e ele comentava algo do que lia. Ela lembra que no início eles dividiam as impressões. Ela lembra que um dia eles trocaram beijos e dançaram coladinhos algumas canções. Ela lembra que antes de ser mãe ela fora mulher, mas isso já faz muito tempo.


Tantas mulheres se encontram assim: fragmentadas, limitadas, apartadas de seu ser.
Pensando na necessidade da mulher cuidar de si, encontrando tempo e espaço seguros para compartilhar é que surgiu a idéia da Vivência Grupal Ser Mulher, lá no Espaço Revitalizar.
http://espacorevitalizar.blogspot.com/2008/09/destaque-vivncia-para-mulheres.html